No meio da reta final da corrida pelo primeiro turno fica difícil visualizar mas a qualidade do processo político está num nível bastante razoável, apesar da inevitável tensão pela disputa do segundo lugar.
A história política do Brasil é uma história de crises institucionais. Só para ficar da redemocratização de 1945 (ela mesma, uma senhora escaramuça) para cá, não houve período em que as ameaças e as realizações de crises, golpes e contragolpes não fossem a regra dominante. Nas sucessões presidenciais de Getúlio Vargas a Itamar Franco, não houve uma sequer que não tenha se dado em meio a uma crise braba. Suicídio de Getúlio; golpe preventivo para a posse de JK; ameaça de pugilato entre o presidente que sai e o que entra na posse de Jânio Quadros; grande confusão, inclusive com mudança do regime de governo, na posse de João Goulard; golpes dentro do golpe em cada sucessão dos governos militares; comoção nacional de grandes proporções na posse de José Sarney; forte tensão na posse de Fernando Collor; crise para democracia nenhuma botar defeito na posse de Itamar Franco. Exceção: 1ª e 2ª posse de Fernando Henrique Cardoso.
Não por acaso. Do ponto de vista político, FHC demonstrou, na prática, ser um hábil negociador, um dos mais efetivos de nossa história recente. Como disse dele, outro dia, o colunista Elio Gaspari: nunca, em quase oito anos de governo, a crise saiu do palácio maior do que entrou. É um grande mérito num país viciado em futricas.
Esse terá sido, sem nenhuma sombra de dúvidas, ao final do governo, um dos principais legados de Fernando Henrique Cardoso. Talvez não pareça muito, mas é. Quando a regra é botar lenha na fogueira, não fazê-lo é um mérito.
Uma parte do mérito, portanto, da “salubridade” do atual processo é do próprio presidente. A outra pode ser atribuída, sem receios, à evolução política do país.
Nunca, em nenhuma sucessão presidencial anterior, se teve a maturidade que se está tendo até agora. Nunca se teve, com um número relativamente alto de candidatos competitivos (quatro), uma convergência tão grande em relação ao diagnóstico dos principais problemas a serem enfrentados e, mesmo, das soluções a serem dadas. Todos sabem e dizem isso em seus programas que a estabilidade terá que ser mantida, que a vulnerabilidade das contas externas terá que ser enfrentada (inclusive, com o aumento significativo do esforço exportador), que o desemprego terá que ser reduzido, que a miséria e a pobreza terão que ser vigorosamente combatidas, que a questão da segurança terá que ser enfrentada com destemor.
Claro que há diferenças, dependendo das preferências pessoais, inconciliáveis entre os candidatos, o que é da própria essência do jogo democrático. Essas diferenças reais ou emocionais não deveriam, todavia, embotar a visão do avanço, da sensível melhoria da qualidade do processo político brasileiro.
Não deixa de ser reconfortante poder perceber isso, independente da escolha que vier a ser feita e das conseqüências que ela terá para o próprio processo político daí para a frente. É legítimo supor que, dado ao avanço já realizado, mesmo se vier a ser feita uma escolha que se mostre inadequada, o país “agüenta” sem grandes traumas.
Talvez seja difícil perceber isso no momento atual, em meio à turbulência econômica e, mesmo, política decorrente do acirramento das posições em disputa pelo segundo turno. Mas vale a pena fazer o esforço de tentar. Com isso, com certeza, a escolha a ser feita ficará menos pesada.
Temos uma cultura de menosprezar os avanços, emocionalizar em excesso as disputas e, não raro, exagerar nos ufanismos tolos. Nesse caso, pelo menos deveríamos, mudar um pouco a conduta tradicional e nos orgulharmos dessa conquista, pouco evidente mas tão importante para o nosso projeto de nação democrática e desenvolvida.